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quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

ANÁLISE CONTEXTUALIZADA DOS CONTOS: O ARQUIVO DE GIUDICE E A METAMORFOSE DE FRANZ KAFKA


ANÁLISE CONTEXTUALIZADA DOS CONTOS: O ARQUIVO DE GIUDICE E A METAMORFOSE DE FRANZ KAFKA
Maitê Lorenco
As realidades personificadas em A Metamorfose de Franz Kafka e O Arquivo de Victor Giudice aludem a situações que coexistem no cotidiano da sociedade em diferentes tempos e lugares, convergindo para a coisificação dos valores humanos; muitas vezes estereotipados e inerentes à sociedade capitalista.
Gregor abre mão de sua subjetividade em prol da família, que demonstra acomodação e omissão diante das adversidades cotidianas. O personagem é apresentado ao público, metamorfoseado em um inseto repugnante. Sua passividade frente às adversidades cotidianas degenera sua percepção em relação ao universo metafísico, em detrimento a suas possibilidades existenciais. A alegoria contextualizada banaliza ações inconscientes, e condicionadas. Para Gregor, o trabalho está além de outros interesses pessoais como passeios e/ou viagens a laser. As responsabilidades econômicas o tornam cativo e submisso; prisioneiro de sua própria existência.
[...] O rapaz não pensa senão no emprego. Quase me zango com a mania que ele tem de nunca sair à noite; há oito dias que está em casa e não houve uma única noite que não ficasse em casa. Senta-se ali à mesa, muito sossegado, a ler o jornal ou a consultar horários de trens. O único divertimento dele é talhar madeira. Passou duas ou três noites a cortar uma moldurazinha de madeira. (A METAMORFOSE, 1997 p.30)

O Arquivo, por sua vez, nos reporta a observar inicialmente um jovem chamado João, aparentemente, ávido pelo sucesso e ascensão profissional. Uma amostra representativa de uma coletividade compacta e camuflada da esfera humana; cujo isolamento amortece a alma e materializa o corpo.
Gregor e João, enquanto sujeitos de uma sociedade, historicamente persuasiva e condicionada ao pragmatismo capitalista, são elementos comuns e necessários que, embora não sejam dispensáveis, devem ser descartados em caso de inutilidade econômica, como sugere o Sr. Samsa, pai de Gregor em A Metamorfose de Kafka (1997, p.30) “Temos que nos ver livres dele [...]. Quando se tem de trabalhar tanto como todos nós, não se pode suportar, ainda por cima, este tormento constante em casa”.
No entanto, observa-se que tais compromissos familiares são consequentes da metamorfose de Gregor, que devido a sua condição de inseto deixa de arcar com as despesas da casa, o que outrora assumira integralmente.
Quanto a João, é um trabalhador que se congratula com subtrações e rebaixamentos ao longo de sua vida profissional. Pode-se dizer que João já havia se coisificado antes de sua transformação em arquivo.
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do salário inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com farrapos de um lençol adquirido há via muito tempo. O corpo era um monte de rugas sorridentes. Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. (O ARQUIVO, 2001, p.383).
Contudo, sente-se imensamente orgulhoso e agradecido diante daquela que seria, segundo seu chefe, a penúltima promoção de sua carreira:
                  - O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários [...].
                - João mostra-se consternado. O chefe continua:
- Dentro de alguns meses já terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro (p.383).
João sentia-se cansado, mas feliz, pois atingira todos os seus objetivos profissionais; não foi com pouco pesar que disse ao chefe: “Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas eu vou requerer minha aposentadoria” (p.383). O chefe demonstra decepção e tenta lembrá-lo de todas as vantagens que obteve durante os quarenta anos de dedicação à empresa. João tenta sorrir. “A emoção impede qualquer resposta” (p.383).
João afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se afundou ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento. João transformou-se num arquivo de metal. (O ARQUIVO, 2001, p.384)

O momento de sua transfiguração é apenas o ápice de uma evolução gradual, alheia a propósitos externos ou ambições subjetivas. Talvez necessário, pois João precisava mesmo descansar.
Gregor, diante de sua metamorfose, não apresenta objeções ou questionamentos acerca da aparência adquirida. O evento é descrito por Kafka, apenas como uma etapa contextualizada a uma sucessão de fatores, sem que haja demonstrações de desconforto ou insatisfação. A adaptação é lenta e contínua; conspira para que haja uma superação paradoxal e irreversível.  Será o inseto que, passivamente, assistirá às mudanças que se operarão na família, enquanto se torna motivo de repúdio e incômodo até que, morto, é finalmente descartado pela empregada da casa, para alívio da família. “Não é preciso preocuparem-se com a maneira de se verem livres daquilo aqui no quarto ao lado. Eu já tratei de tudo” (1997, p.34).
Tanto A Metamorfose de Franz Kafka, quanto O Arquivo de Victor Giudice, representam em muitos aspectos a realidade do povo brasileiro. Gregor e João são elementos aprisionados e condicionados pelas imposições sociais e econômicas do capitalismo. Há diferenças pessoais que os particularizam, tais como a família e o momento da vida em que se dá a metamorfose de cada um, porém, ambos são prisioneiros dos valores impostos pela sociedade capitalista.
Como Joãos e Marias, filhos de um país que sofreu por muito tempo com a instabilidade econômica, sabemos o que é ter de se adaptar a cortes freqüentes no orçamento familiar e/ou pessoal. Em contrapartida, conhecemos, e, talvez até, convivemos com pessoas que se deixavam explorar, fingindo felicidade num período de recessão inflacionária. Adaptando-se, moldando-se e, sobretudo, tornando-se escravo de sua própria existência.





REFERÊNCIA


KAFKA, Franz. A Metamorfose. 14ª Ed. Tradução de Modesto Carone, Companhia das Letras. São Paulo, 1997.

GIUDICE, Victor. O Arquivo. In. MORICONI, Italo. (Org). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.


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